Toda vez que lemos a inspirativa Parábola do Semeador que Jesus contou e os evangelhos registraram (Mateus 13:1-23, Marcos 4:1-20 e Lucas 8:5-15), ela nos remete, de imediato, a um conjunto de significados que nos é muito caro. Por exemplo, a figura do semeador, em um primeiro momento, aponta para aquela pessoa que comunica a Palavra divina. Esta Palavra indica que a mensagem comunicada é mais do que simplesmente discurso; antes, é a pessoa mesma do Cristo que é partilhada, seus ensinos, suas experiências e sua necessidade de transmitir um tipo de vida tão plena que é capaz de ultrapassar os limites impostos pela própria morte.
Essa Palavra divina é apresentada como sendo a própria semente. Ela contém o embrião de uma nova existência, de um olhar novo com que se olha a realidade que nos cerca. Sendo, portanto, princípio de vida ou, como diria o sábio Aristóteles, potência em busca da realização plena de si mesma, ela necessitaria encontrar um tipo de solo que lhe seja propício, para que possa, de modo efetivo, cumprir o belo propósito que dela se espera.
Os solos que se apresentam na parábola de Jesus expressam, no fundo, as reações dos mais diversos tipos de pessoas diante da semente-mensagem que lhes é apresentada na parábola. O primeiro é o próprio solo da beira do caminho. É lugar de trânsito permanente, da correria do dia a dia, do ir e vir de um cotidiano que, na maioria dos casos, não permite que percebamos uma semente caída que, por motivos óbvios, precisaria de alguma ajuda para que pudesse ser plantada, germinar e crescer.
O solo, comprimido pelo ansioso passo dos que vêm e vão, se apresenta rígido, endurecido pelos dissabores da existência de quem, como diria uma velha canção, “não pode parar, porque, se para, pensa e, se pensa, chora”. É o solo dos corações fechados, da indesejável solidez das posições radicais, dos extremismos, da total indisposição para se ouvir e refletir sobre algo diferente do que sempre fomos ou vivemos. Quando o semeador lança a sua semente em um solo dessa natureza, ela fica perdida, abandonada, vulnerável e, como conta Jesus, vem às aves do céu que vêm e a devoram (Mateus 13:4).
O segundo tipo de solo é pedregoso ou rochoso e é apresentado por Jesus como aquele que não permite que a semente aprofunde as suas raízes de modo a produzir o que se espera dela. A referência é àqueles que não têm raiz em si mesmos e, portanto, se tornam vítimas de todo tipo de engano, não resistindo aos tempos de angústia e pressão. São aqueles que se encantam com algo que, em um primeiro momento, lhes parece extraordinário, mas, por não terem raízes profundas, não resistem aos desencantos, às dores da existência.
Com isso, acabam abrindo mão dos seus sonhos, dos seus desejos, de todas as possibilidades de vida que se colocam em seu caminho. Vocês se lembram do marcante poema de Carlos Drummond de Andrade, “No meio do caminho”? De fato, encontramos pedras em nosso caminho e, algumas delas, se transformam em obstáculos intransponíveis para que a semente venha a brotar.
O terceiro tipo de solo é cheio de espinheiros. A ideia aqui é que a pessoa recebe a mensagem, mas as vozes/espinhos da indiferença, da falta de sentido, da desesperança e do pessimismo falam mais forte e sufocam a beleza e a novidade da Palavra divina. Com isso, o que ecoa da Palavra não encontra lugar, é som que entra por um ouvido e sai por outro. É melodia que não emociona, não toca a alma, não preenche os nossos espaços vazios.
Dessa forma, não se vive a experiência da descoberta. Ficamos limitados a uma eterna repetição de sensações e sentimentos, que lança densa neblina sobre aquilo que deveria ter profundo sentido e significado. Assim, imersos no “aqui e agora”, o que vale são os interesses pessoais, as paixões momentâneas, a necessidade de atender algumas demandas próprias do cotidiano que, em alguns casos, se tornam imperativas a ponto de impedir que o olhar da pessoa se volte para a busca da alteridade, do encontro com o outro, do diálogo.
O quarto tipo de solo é fértil. É a terra propícia para receber a semente. A partir dessa experiência enriquecedora, sem dúvida nenhuma a pessoa se dispõe, em primeiro lugar, a um encontro com esse Cristo-Palavra, que instaura em si mesma a dimensão da esperança, da fé e do amor que faz de sua vida um instrumento de paz, como na inesquecível prece de Francisco de Assis:
Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
A Rede Batista de Educação tem se empenhado desde os idos de 1918 na criação de um ambiente tal que permita que circule em nosso meio a Palavra divina. Vimos até esse ponto de nossa reflexão a necessidade de que, como semeadores, espalhemos a semente dessa Palavra na busca de muitos solos férteis que possam reproduzi-la a todo momento. Isso se torna ainda mais significativo quando pensamos em Deus agindo em relação a nós como semeador e no que ele semearia em nós. E, quando cada um de nós age como semeador, somos convidados a espalhar a semente da Palavra divina; quando Deus age como semeador, E semeia estrelas nas profundezas do nosso íntimo.
Essas estrelas nos ajudam a reproduzir um pouquinho que seja de sua luz para iluminar as noites escuras desse mundo e desse tempo tão difícil que estamos vivendo. Nesse sentido, podemos dizer que Deus semeia em nós a estrela da esperança, a estrela da fé e a estrela do amor, consideradas as virtudes teologais que se apresentam aqui como cardeais ou polares, em torno das quais circulam todas as demais virtudes, de acordo com a visão cristã de mundo.
Portanto, Deus como semeador semeia em nós a esperança, e ela brilha ainda mais intensamente quando a noite é mais escura. Ela representa uma área dentro de nós mesmos que se responsabiliza pela nossa capacidade de resistência. O salmista entendeu isso de modo perfeito: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Salmo 30:5). Sabemos que, por mais que demore a raiar, o novo dia chega. Por isso, Deus faz brilhar em nós a estrela da esperança. É preciso sobreviver às lágrimas, é preciso vencer a dor, é preciso sonhar de novo. É como se expressou o poeta Augusto dos Anjos:
“A Esperança não murcha, ela não cansa.
Também como ela não sucumbe a Crença,
vão-se os sonhos nas asas da Descrença,
voltam os sonhos nas asas da Esperança”.
Como semeador de estrelas, nosso Pai Celestial planta em nós a semente da fé que nos mobiliza a ir ao encontro daquilo que desejamos. Não se trata mais de esperar que algo efetivamente aconteça. Trata-se do movimento ativo de nos lançarmos na direção daquilo que almejamos. Muito bem nos ensinou o autor da Carta aos Hebreus: “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem” (Hebreus 11:1).
Mais adiante o mesmo autor bíblico nos mostra que sem fé não podemos agradar a Deus (cf. Hebreus 11:6), e isso é assim porque sem fé nos tornamos desvitalizados, perdemos o brilho no olhar, nossos ombros decaem, cada passo dado se torna um sofrimento, a angústia nos consome. É quando estamos cheios dessa fé viva que se torna possível apagar a força do fogo, escapar do fio da espada, da fraqueza tirar forças, esforçar-se ainda mais nos campos de batalha da vida, colocar em fuga o exército dos estranhos (cf. Hebreus 11:34).
Finalmente, o nosso Pai Celestial planta em nós a semente do amor. Ele nos ensina a mergulhar fundo na dimensão da alteridade. Na experiência do amor, nossa vida se transforma em dádiva, em partilha, em encontro, em um bem querer que se concretiza em um olhar, em uma palavra amiga, em uma escuta atenta… Sem amor a vida não é possível, sem amor tudo perde a sua cor. É como nos disse um dia o grande dramaturgo Sófocles: “Uma palavra nos liberta de todo o peso e da dor dessa vida: essa palavra é ‘amor’”.
Se não há amor, pouco vale comunicar-se em diversos idiomas; se não há amor, o conhecimento dos mistérios e da ciência se torna inócuo; se não há amor, a fé, mesmo que fosse capaz de transportar os montes, não tem alma; se não há amor, mesmo o autossacrifício de nada adianta (cf. I Coríntios 13:1- 3). É que, para o apóstolo Paulo, o amor nunca falha (cf. I Coríntios 13:8). É dele que a esperança e a fé devem se alimentar. Que, assim como estrelas que iluminam as noites mais escuras, possamos nos colocar nas mãos de Deus, para que ele nos faça instrumentos de sua paz.
Pastor Rubens Eduardo Cordeiro
Capelão Geral da Rede Batista de Educação